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questiona tudo o que foi escrito até hoje e
aponta para outras hipóteses que só a
descoberta de eventual documentação pode
esclarecer cabalmente. Desde logo, a
inexistência de qualquer data, em vez de
1776, como tem sido defendido, ou mesmo
1786, pois, segundo este autor, o que lá está
são dois traços verticais, cada um
correspondendo ao algarismo “um”. A terceira
parece um número oito deitado, símbolo de
“mil”, normalmente usado para representar
“mil réis”, que começou por ser representado
como um “U” cruzado, mas, no século XVIII,
tomou a forma de um oito deitado que mais
tarde se transformaria em cifrão ($). A quarta
letra é um “O” com “~” (til), uma nasal que dá
a forma de seis cursivo. Finalmente, a palavra
que tem sido lida como “sete” é “&itc”, ou
seja, “etcetera”. A primeira letra é um “&” (“e”
comercial) e normalmente representa “
et
”, o
“e” latino. Nunca poderá ser o chamado “s de
sino”, pois esse só aparece no nosso tempo.
As outras letras são claras. “itc”: O “i” é igual
aos outros “ii”, tal como o “t” e o “c”. Nunca
poderão ser “e” por comparação aos restantes
“e” do prato. Onde se pretendeu ler “barro”, é
“parro”, pois o que lá está é um “P” maiúsculo.
Visto “Parro” ser um apelido de origem
portuguesa, pouco comum, que tem
incidência no Brasil, nomeadamente em
Minas Gerais, e “unicórnio” ser o nome
atribuído, no século XVIII, à ave “Inhaúma”
(nome científico:
Anhima cornuta
), cujo
chifre era usado na medicina tradicional
contra as picadas de cobra, ave que ainda
existe na Amazónia brasileira, estados do
Mato Grosso e Goiás, onde ainda hoje é
chamada de “Unicórnio” 3 . Estamos, portanto,
perante dois substantivos com incidência
regional no Brasil do século XVIII.
Apesar de desfeita a tradicional leitura, o
enigma continua, dada a divergência entre a
decoração central e a frase, bem como a
presença da abreviatura “etc.”, que remete
para conteúdo mais vasto e leva João Miguel
Simões a supor estar perante um anagrama,
isto é,
Parro He outro Oinicornio
esconde
outra frase que deve ser feita recorrendo às
mesmas letras, sem excluir ou introduzir
alguma, como por exemplo “Rico Rei no oiro.
Ho prato Nu”.
Como na decoração aparecem dois soldados
de infantaria, os chamados dragões, que no
Brasil tinham a responsabilidade de colectar
os impostos e as remessas de ouro e escoltá-
-las para Portugal, a ladear um recipiente, o
autor julga que esta frase pode significar
que, graças à excessiva colecta de ouro por
parte da coroa portuguesa, os brasileiros
queixavam-se de ter o prato vazio, sem nada
para comer. Assim se justifica a presença dos
dragões, do recipiente da colecta ao centro e
da inscrição 11 mil onças (cerca de 21,5
arrobas), pois era em onças que se media o
ouro. Assim, esta decoração pode estar
relacionada com a violência da colecta de
ouro imposta pela coroa portuguesa aos
brasileiros. Em 1785, foi imposta a Derrama,
uma taxa coerciva que obrigava os brasileiros
a contribuírem do seu bolso para atingir as
100 arrobas de ouro anuais. Este
descontentamento originou, em 1789, a
Inconfidência Mineira, liderada por
Tiradentes.
Esta hipótese, que agora se apresenta, aponta
para a possibilidade de a encomenda ter sido
feita por alguém de apelido Parro, do estado
de Minas Gerais, Brasil, no último quartel do
século XVIII, eventualmente para manifestar o
seu desagrado pela excessiva carga fiscal
imposta por Portugal aos brasileiros.
Como em muitos serviços de porcelana de
encomenda, o monograma PFV continua por
explicar.
Na ausência de documentação, proliferam as
teorias e a decoração em apreço não é
excepção, tendo suscitado diferentes
interpretações.
Este serviço é tradicionalmente denominado
por serviço dos
Meninos de Palhavã
,
designação pela qual eram conhecidos três
dos filhos bastardos de D. João V: D. José de
Bragança, filho de Madre Paula; D. Gaspar de
Bragança, filho de D. Madalena Máxima de
Miranda, e que veio a ser arcebispo de Braga;
e D. António de Bragança, filho de uma
senhora francesa, os quais teriam sido
criados no palácio daquele nome, então nos
arredores de Lisboa. No entanto, o Palácio de
Palhavã apenas foi ocasionalmente usado
como residência das crianças, que foram
educadas no mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra 4 .
Há autores que vêem nas iniciais PFV ou JFV
as iniciais de Paulo Fernandes Viana, pai de
Paulo Fernandes Carneiro Viana, 1.º barão de
S. Simão 5 , atribuição que carece de
justificação.
Nuno de Castro refutou as teses anteriores
e defende a hipótese de este serviço ter
sido encomendado para comemorar o
10.º aniversário do Real Colégio dos Nobres
de Lisboa, escola destinada ao ensino dos
fidalgos portugueses, inaugurado a 19 de
Março de 1766 e abolido em 4 de Janeiro de
1838, tendo os seus alunos passado para o
Colégio Militar. O autor fundamenta a sua
opinião nos seguintes factos: a presença das
figuras dos jovens fardados, aludindo à
tradição militar da educação dos nobres
daquela época; a data de 1776, inscrita em
todas as peças; a existência do vaso ou
almofariz evocando o laboratório de Física
Experimental no Colégio, onde teria sido
analisado e ensaiado o óxido de cobalto,
asbolite, o que justificaria o uso de almofariz
e da presença de
Unicórnio
na legenda, por
ser também sinónimo de “pureza de pedra
mineral”, no século XVIII; as iniciais
entendidas como PFV – poderão significar
Padroeira Fidelíssima Virgem, em homenagem
a Nossa Senhora da Conceição, padroeira do
Colégio – ou JFV, alusivas a José Faro e Veiga,
de seu nome completo António José de
Vasconcelos e Sousa da Câmara Caminha
Faro e Veiga, secundogénito do 1.º marquês
de Castelo Melhor, director e inspector do
Real Colégio dos Nobres; a frase 1776 SETE
BARRO HE OUTRO OUNICORNIO poder
referir-se ao caulino que teria sido enviado
de Portugal, em 1775, para a execução desta
encomenda, feita no laboratório do Colégio,
considerado um dos melhores laboratórios de
física experimental da Europa 6 .
O argumento de na manufactura do serviço
se ter usado caulino português é contrariado
pelo facto de esta matéria-prima só a partir
de 1832, por iniciativa de José Ferreira Pinto
Basto, a Vista Alegre, a mais antiga fábrica a
produzir porcelana em Portugal, ter passado
a dispor, perto e em boas condições de caulino
indispensável à produção regular e
[…]
a poder
encaminhar-se para a produção concorrencial
da porcelana portuguesa
[…] 7 .
Mais recentemente, todas as teorias
defendidas foram questionadas por João
Alarcão e Jorge Brito e Abreu através de
outra hipótese, que, também ela, carece de
fundamentação documental. Para estes
autores, a inclusão na decoração dos
soldados a ladear o almoxarife deixa admitir
tratar-se de uma instituição militar, cuja
importância é relevada pela coroa real;
admitem a possibilidade de o monograma
poder ser entendido como RFP, a sigla da
Real Fábrica da Pólvora, simbolizando o
almofariz, nesse caso, o esmagamento e
mistura das matérias para feitura da pólvora;
vêem na inscrição uma possível alusão à
reconstrução da Real Fábrica, destruída pelo
fogo, em 1774, e ao novo poder de fogo e
militar que voltava a sair 8 . No entanto, a
reabertura da referida fábrica, em 1802,
parece muito desajustada com a data que
figura na inscrição.
Existem peças deste serviço em várias
colecções portuguesas, nomeadamente: uma
terrina com prato na Fundação Medeiros e
Almeida, Lisboa 9 , o corpo de uma terrina na
Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva,
Lisboa 10 , e algumas peças no Museu
Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
1 Leitura heráldica por MLCB.
2 Leitura feita por João Miguel Simões, a quem se
agradece a nova teoria agora apresentada.
3 http://pt.wikipedia.org/wiki/Anhuma, 20/07/2009.
4 Zúquete, 1960, vol. I, p. 560.
5 Idem, 1961, vol. III, pp. 354 e 711.
6 Castro, 1987, p. 150.
7 Macedo, 1989, p. 28.
8 Branco e Abreu,
in
Antunes, 1999, pp. 164-165.
9 Castro,
ibidem
, p. 149; Pinto de Matos e
al
., 1992,
p. 184, n.º 89.
10 Antunes,
ibidem
, p. 56.
114 .
PORCELANA DA CHINA ARMORIADA